Edição Set-Out 2024 Publicado em: 15 outubro 2024 | 13:57h

Exames laboratoriais para transplante de órgãos

Como exames avançados garantem compatibilidade e segurança para doadores e receptores de órgãos?

Como exames avançados garantem compatibilidade e segurança para doadores e receptores de órgãos?

 

Por Eduardo Jorge Emery, médico patologista clínico e coordenador do Comitê de Imunologia da SBPC/ML 

 

O Brasil é o segundo maior país em número de transplantes no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, de acordo com o Ministério da Saúde. Em 2023, o país registrou um aumento de 17% nas doações em comparação ao ano anterior, alcançando o melhor resultado dos últimos dez anos: 6.766 transplantes realizados entre janeiro e setembro, em contraste com 6.055 no mesmo período de 2022. No primeiro semestre de 2023, foram realizados 206 transplantes no país. Esses transplantes dependem diretamente de uma série de exames laboratoriais, que aumentam significativamente a probabilidade de uma maior compatibilidade entre doador e receptor e monitoram possíveis rejeições. Por isso, a patologia clínica e a medicina laboratorial são fundamentais para o sucesso dos transplantes, pois garantem que os órgãos e tecidos transplantados sejam compatíveis e seguros para os receptores.

 

Os exames laboratoriais são fundamentais para todos os tipos de transplante, conforme estabelecido pela Portaria 2600, de 21 de outubro de 2009, que regulamenta o Sistema Nacional de Transplantes. Essa portaria detalha diversas orientações, incluindo as câmaras técnicas responsáveis por diferentes tipos de transplantes, como coração, pulmão, fígado, pâncreas, rim, medula óssea e tecidos oculares.

 

É importante destacar que alguns exames são comuns a todos os transplantes, enquanto outros são específicos, conforme as diretrizes de cada câmara técnica. Além dos exames laboratoriais, a portaria também contempla exames de imagem e cardiológicos. 

 

Como os exames de triagem para doenças infecciosas contribuem para a segurança na doação de órgãos e medula óssea

 

Os exames de histocompatibilidade são fundamentais e devem ser realizados tanto para o receptor quanto para o doador, conforme a Portaria 2600. Um dos principais exames recomendados é a genotipagem do sistema HLA, que significa antígeno leucocitário humano. Essa avaliação do grau de histocompatibilidade é realizada por biologia molecular, uma subárea da patologia clínica e medicina laboratorial.

 

As moléculas do sistema HLA estão presentes na superfície de todas as células nucleadas do organismo, com exceção das hemácias, que não possuem núcleo. No contexto da doação de órgãos ou tecidos, o ideal é que o sistema imunológico do receptor não reconheça essas moléculas como estranhas, evitando a rejeição do transplante. Por isso, doadores de parentesco próximo, como irmãos ou pais, são preferíveis. A genotipagem é obrigatória para qualquer transplante, uma vez que já existem mais de 17 mil variantes genéticas conhecidas. Vale mencionar que uma pessoa pode ter diferentes tipos de HLA, incluindo HLA A, B, C, D, E, R, DQ e DP.

 

Outro exame importante é a prova cruzada (cross match), que avalia a presença de anticorpos anti-HLA no soro do receptor contra as células do órgão do doador, seja ele vivo ou falecido. Neste exame, o soro do receptor é colocado em contato com as células do doador, observando-se a destruição ou não dessas células.

 

Além disso, recomenda-se a pesquisa de anticorpos anti-HLA no soro do receptor e do doador, realizada por metodologias como citometria de fluxo e biologia molecular. É importante notar que os resultados podem variar entre amostras do mesmo receptor ou doador, dependendo do momento do sistema imunológico e podendo sofrer interferências, como no caso de transfusões sanguíneas, que podem gerar anticorpos contra os leucócitos.

 

No caso de transplante de células-tronco hematopoéticas (transplante de medula), são necessários vários exames específicos de tipificação do complexo HLA, destacando a diversidade de exames exigidos nesse contexto. Outros exames de incompatibilidade também podem ser adicionados aos protocolos pelas unidades de saúde que realizam transplantes, conforme a avaliação das equipes de saúde responsáveis.

 

Parâmetros avaliados nos exames laboratoriais para garantir a saúde geral do doador antes da doação de órgãos

 

A Portaria 2600 recomenda a realização de diversos exames para triagem de doenças infecciosas em todos os receptores e doadores. No caso dos doadores, apenas a sorologia positiva para HIV e HTLV-1 e 2 (vírus linfotrópico humano de células T), são excludentes obrigatórios, o que significa que o órgão será rejeitado. Já para exames como HbsAg e anti-Hbc (hepatite B), anti-HCV (hepatite C), sorologia para Chagas, citomegalovírus (IgM e IgG), e VDRL ou imunofluorescência para sífilis, a exclusão do órgão depende de cada caso, conforme as orientações da portaria.

 

A nota técnica 140/2023 do Ministério da Saúde também exige que a pesquisa de SARS-CoV-2, por biologia molecular, seja realizada em doadores vivos e falecidos. Para doadores vivos, o material é coletado por swab nasofaríngeo, e, para os falecidos, por aspirado traqueal ou lavado brônquico. A aceitabilidade do órgão ou tecido dependerá dos resultados, mas a portaria não recomenda a pesquisa de antígeno viral ou exames sorológicos para SARS-CoV-2.

 

No caso do transplante de rim, a portaria exige, para receptores, a pesquisa de IgG e IgM para o vírus Epstein-Barr, enquanto, para os doadores, a equipe de transplantes pode optar pela pesquisa de outros marcadores infecciosos, como toxoplasmose e citomegalovírus. Se esses exames não forem feitos, amostras de sangue devem ser enviadas junto com o órgão para análise posterior, se necessário.

 

Outro ponto importante é que a história de tuberculose ativa no doador é excludente para doação, assim como infecções virais e fúngicas graves em doadores imunossuprimidos. Mais uma vez, os critérios de exclusão ou aceitação de receptores e doadores para doenças infecciosas são baseados nos resultados dos exames indicados na Portaria 2600.

 

Como a medicina laboratorial auxilia na detecção precoce de rejeição de órgãos após o transplante

 

Excluindo-se os exames para doenças infecciosas já mencionados, a Portaria 2600 recomenda para todos os receptores a realização dos seguintes exames: dosagem de sódio, potássio, glicose, creatinina, tipagem sanguínea para o sistema ABO e hemograma completo. Dependendo do tipo de transplante, outros exames são exigidos. Por exemplo:

 

·  Transplante de fígado: dosagem de alfa-fetoproteína;

 

·  Transplante de pâncreas: dosagem de amilase, hemoglobina glicada e peptídeo C para verificar a produção de insulina;

 

·  Transplante de rim: determinação da depuração de creatinina.

 

Além disso, conforme já mencionado, os critérios de exclusão obrigatórios da Portaria 2600 devem ser seguidos. Contudo, outros critérios relacionados a doenças infecciosas ou outras condições podem ser definidos pelas equipes de transplante. Por exemplo, um doador com HCV positivo só pode doar para um receptor também HCV positivo. No caso de hepatite B, doadores com anti-Hbc positivo, HbsAg negativo e anti-Hbs negativo, assim como doadores HbsAg positivo, podem ser potenciais doadores para receptores com HbsAg positivo.

 

Avanços recentes na patologia clínica têm melhorado a precisão dos exames para doação de medula óssea

 

A Portaria 2600 não estabelece critérios laboratoriais para a detecção precoce da rejeição de transplantes. Em função disso, há uma grande variedade de recomendações para exames laboratoriais utilizados no monitoramento da rejeição, que podem variar conforme o tipo de transplante. A rejeição pode ser classificada em aguda, hiperaguda ou crônica, cada uma com características específicas de evolução.

 

O principal objetivo do monitoramento da rejeição é ajustar o tratamento imunossupressor, suprimindo ou diminuindo a resposta imunológica ao órgão ou tecido transplantado. Embora a biópsia do órgão seja o padrão ouro para diagnosticar a rejeição, é um exame invasivo, doloroso e caro.

 

Alguns dos exames usados no monitoramento da rejeição incluem: pesquisa de anti-HLA, prova cruzada (entre o soro do receptor e o órgão transplantado), hemograma completo para detectar infecções, leucocitose e linfocitose, e dosagem de creatinina (principalmente em transplantes renais). Outros exames incluem dosagem de imunoglobulinas, complemento, proteínas de fase aguda (como alfa-fetoproteína, alfa-1-antitripsina e proteína C reativa), além de biologia molecular (PCR e RT-PCR) para quantificação de genes relacionados a citocinas, como interleucinas e interferon. No transplante cardíaco, dosagens de BNP (peptídeo natriurético cerebral) e troponina também são utilizadas.

 

Importância do acompanhamento laboratorial contínuo após a doação de medula óssea ou órgãos

 

Diversos exames laboratoriais são essenciais para a monitorização precoce do processo de rejeição de transplantes, variando conforme o tipo de transplante realizado e os protocolos específicos. Essa monitorização é crítica, pois a literatura mostra taxas de rejeição de 50 a 60% em transplantes de medula óssea, 80% em pulmão, 60% em coração, 50% em rim e 10% em fígado.

 

Esses dados evidenciam a importância da patologia clínica e da medicina laboratorial nos processos iniciais de avaliação de receptores e doadores, na análise da compatibilidade entre órgãos e tecidos, e na monitorização da rejeição no pós-transplante.

 

É relevante destacar o papel da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), que oferece informações e orientações, além de realizar um trabalho educativo fundamental para conscientizar a população sobre a importância da doação de órgãos para salvar vidas.

 

 

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