Edição Set-Out 2024 Publicado em: 07 outubro 2024 | 09:30h

Minicérebros criados em laboratório são esperança para doenças neurológicas

Em uma jornada pessoal e científica, o biólogo e neurocientista Alysson Muotri explica a organogênese cerebral in vitro e suas aplicações


Quem vê Alysson Muotri se destacar como um dos maiores nomes da neurociência mundial não imagina o verdadeiro ponto de partida de suas pesquisas com organoides cerebrais. De maneira íntima e emocionada, o cientista compartilhou, durante Conferência Magna no fechamento do 56º Congresso Brasileiro de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (CBPC/ML), realizado em Salvador (BA), que sua motivação inicial para investigar o desenvolvimento cerebral humano foi profundamente pessoal.


“Meu filho, Ivan, é autista nível 3 e tem uma série de comorbidades associadas. Ele tem diversas convulsões por dia. É o tipo de pessoa que requer uma assistência durante 24 horas”, revelou o diretor de um dos laboratórios mais avançados da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD). "Quando você se depara com um diagnóstico assim, como pai, tudo o que você quer é respostas", confessou Muotri. "Eu não estava apenas buscando entender as complexidades do autismo, eu estava buscando entender meu próprio filho."


Com essa perspectiva única, tanto de pai quanto de pesquisador, Muotri mergulhou em uma das áreas mais promissoras e desafiadoras da ciência contemporânea, levando seu trabalho além das fronteiras do conhecimento acadêmico e se aproximando de uma questão humana e familiar. O cientista se transformou em um dos pioneiros no desenvolvimento dos chamados minicérebros, estruturas criadas em laboratório que replicam o cérebro humano em seus estágios iniciais de formação.


Durante a aula, mediada por Carlos Alberto Mayora Aita, patologista clínico do Laboratório Diagnósticos do Brasil, Muotri trouxe à tona o impacto e as possíveis aplicações dessa técnica revolucionária, que permite a fascinante viagem pela organogênese cerebral in vitro. Ele abordou como os avanços em organoides cerebrais estão abrindo novas fronteiras no estudo de doenças neurológicas e como essa tecnologia ajudou a demonstrar a relação entre a versão brasileira do vírus da Zika e as malformações do córtex cerebral que ele causa.

 

ALISSON MUOTRI

Mini cérebros ajudam a desvendar o futuro

Alysson Muotri começou explicando o conceito central da organogênese cerebral in vitro, destacando que essa técnica consiste em criar estruturas que replicam o desenvolvimento de um cérebro humano em seus estágios iniciais.

 

"Usamos células-tronco pluripotentes, que têm a capacidade de se diferenciar em qualquer tipo de célula, para formar organoides cerebrais. Meu laboratório trabalha na interface da genética e da neurobiologia", explicou o professor.

 

Esses minicérebros fornecem um modelo poderoso para estudar aspectos fundamentais do desenvolvimento neurológico. "Com eles, podemos investigar doenças neurodegenerativas, transtornos do desenvolvimento e até testar novas terapias com uma precisão nunca antes alcançada", afirmou. De acordo com ele, os organoides recriam a maneira como o cérebro humano se desenvolve no útero, oferecendo uma plataforma única para estudar o desenvolvimento do órgão. “Tudo o que acontece no útero nos interessa”, ressaltou.

Muotri já tem uma vasta experiência em pesquisa com células-tronco. Suas pesquisas em neurociência e projetos já levaram os minicérebros ao espaço, produzindo resultados capazes de influenciar até mesmo o futuro da Inteligência Artificial. 

 

“O cérebro humano continua sendo uma caixa-preta. O cérebro de uma criança de 2 meses tem neurônios trabalhando de forma randômica. Aos 4 meses, ele está trabalhando de forma mais ordenada. A gente consegue acompanhar essa atividade neural”, afirmou. Muotri explicou que a grande vantagem dos organoides é que eles imitam o desenvolvimento do cérebro humano no útero. “O cérebro de um camundongo está totalmente formado em cerca de 20 dias. Ele não é o ideal para aplicarmos os testes. Os minicérebros facilitam a pesquisa clínica sem usar animais”.

 

Organogênese busca tratamentos


Muotri detalhou como a organogênese cerebral está abrindo novas fronteiras no entendimento de doenças neurológicas complexas, como o autismo, a epilepsia e a esclerose lateral amiotrófica (ELA). "Estamos criando modelos personalizados de cérebros com base no DNA de pacientes com essas condições. Isso nos permite estudar o impacto de mutações genéticas específicas e como elas afetam o desenvolvimento do cérebro,” explicou.

Um dos exemplos mais notáveis discutidos foi o uso de organoides cerebrais para investigar o autismo. "Criamos organoides a partir de células de pacientes com autismo e conseguimos observar diferenças estruturais e funcionais em comparação com cérebros neurotípicos," disse Muotri. Essas descobertas fornecem pistas sobre as causas do autismo e podem eventualmente levar a terapias mais direcionadas.

Outro campo promissor que Muotri abordou foi o uso dos organoides para testar novos medicamentos. “Podemos submeter os organoides a diferentes compostos e observar suas respostas, o que nos dá uma ideia preliminar de como esses medicamentos poderiam funcionar no cérebro humano”, disse ele. Isso acelera o processo de descoberta de novos tratamentos, além de fornecer dados importantes para personalizar terapias de acordo com o perfil genético de cada paciente.

Minicérebros rumo ao espaço

Explorar a biodiversidade da Amazônia em busca de tratamentos para doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer, e outras condições neurológicas, incluindo o autismo. Essa é mais uma iniciativa da equipe de Alysson Muotri. Ele revelou que toca, em cooperação com a Universidade Federal do Amazonas (UFAM), uma pesquisa para enviar minicérebros à Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês) para estudos em condições de microgravidade.

O objetivo, segundo o pesquisador, é avançar o entendimento de doenças neurológicas por meio do estudo de moléculas oriundas da biodiversidade de plantas amazônicas com potencial terapêutico. “Enviamos robôs com inteligência artificial para identificar e coletar espécies na floresta”, explicou ele, que pode se tornar o primeiro cientista brasileiro numa missão espacial.

 

“Se alguma droga for desenvolvida a partir disso, os royalties voltam para as comunidades originárias e ajudam a preservá-las. Então, tem um potencial muito grande. Tem aplicações aqui em terra que são interessantes, desde o rejuvenescimento, como regeneração, até entender o envelhecimento saudável e usar essa plataforma como o teste de drogas”, disse.

 

O envio dos minicérebros ao espaço não é exatamente uma novidade para Muotri. Desde 2019, em colaboração com a Nasa e a Universidade da Califórnia, ele envia o experimento ao espaço. Seus estudos constataram que por lá as células cerebrais envelhecem cerca de 10 anos em um mês. Agora, Alysson Muotri está criando uma equipe de cientistas astronautas, com a perspectiva de instalação de um laboratório no espaço.

 

 

Desafios éticos


Apesar dos avanços, Muotri foi enfático ao abordar os desafios éticos e técnicos envolvidos na criação de organoides cerebrais. "Ainda não criamos cérebros totalmente funcionais, mas à medida que essa tecnologia evolui, precisamos considerar as implicações morais e éticas de manipular tecidos cerebrais humanos", alertou o pesquisador.

Ele também destacou as limitações técnicas atuais, como o fato de que os organoides não possuem um sistema vascular, o que limita seu crescimento e complexidade. "Precisamos continuar avançando nessas questões para melhorar os organoides em relação aos cérebros reais”, defendeu.

Ao final da conferência, Carlos Alberto Aita reforçou a importância da discussão sobre os limites éticos da pesquisa e parabenizou Muotri pelo brilhantismo e qualidade dos conhecimentos entregues. "Estamos em um campo em que a ciência e a ética precisam andar lado a lado. É fascinante ver o quanto já foi alcançado. Muito obrigado por dividir tanto aprendizado”, agradeceu. 

A conferência deixou claro que a organogênese cerebral in vitro não apenas está transformando a neurociência, mas também desafiando os limites do que se entende como possível. As implicações dessa tecnologia são vastas, com o potencial de mudar o tratamento de doenças neurológicas, revolucionar o desenvolvimento de medicamentos e até explorar os mistérios da mente humana.

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